http://capitalismoemdesencanto.wordpress.com/2014/02/24/liberdade-folia-e-luta-contradicoes-e-desafios-do-carnaval-do-rio-de-janeiro/
*Por Diogo Eduardo e Hugo Duarte.
“O carnaval é e sempre
será um ato político. É a incorporação da arte no cotidiano. Lutar para
preservar sua potência é lutar por uma rua que nos é sempre tirada.
Avancemos foliões! Viva o carnaval, viva o Zé Pereira e o Saci Pererê.
Viva o sorriso doce dos que desobedecem. Em tempos de tanques nas ruas,
não retrocedamos, com a certeza de que um dia o exército de palhaços
vencerá!” (Manifesto do Carnaval de Rua da Desliga dos Blocos do Rio de Janeiro)
A maior festa popular do país está prestes a começar.
Confetes, serpentinas, fantasias e desfiles vão preencher o Sambódromo e
as ruas da cidade que é hoje a grande vitrine mundial da folia. Os
números retratam um pouco as dimensões desse evento: em 2013, segundo os
dados da Secretaria de Turismo do Rio de Janeiro, o carnaval atraiu
mais de 5,3 milhões de foliões, dos quais mais de 1 milhão e 200 mil
eram turistas, gerando uma renda estimada em 848 milhões de dólares.
Além dos tradicionais desfiles das Escolas de Samba, a cidade reuniu 492
blocos autorizados pela prefeitura, em cortejos pelos mais diversos
bairros da capital.
O carnaval carioca atrai corações e mentes não apenas
de Pierrôs e Colombinas, mas principalmente do poder público e da
iniciativa privada que, a cada ano, vem demonstrando mais afinidade na
transformação da folia em um produto, cujo retorno financeiro não para
de crescer. Os patrocínios e as parcerias entre o Estado e as empresas
privadas estão assumindo a marcação e ditando o compasso da festa. As
Escolas de Samba são exemplos concretos desse horizonte nebuloso. No
último ano, a Vila Isabel foi campeã com o samba-enredo “A Vila canta o
celeiro do mundo”, patrocinada pela Basf, empresa química multinacional.
O vice-campeonato ficou com a Beija-Flor, responsável por trazer para a
avenida a história de uma raça de cavalo, financiada em cerca de R$ 6
milhões pela Associação Brasileira dos Criadores de Cavalo Mangalarga
Marchador.
A Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de
Janeiro (Liesa) não proíbe o financiamento privado, restringe somente a
apresentação de marcas ou de qualquer tipo de merchandising, implícito
ou explícito, na passarela, com o objetivo único de proteger os
parceiros comerciais da Rede Globo, que detém os direitos de transmissão
dos desfiles. Além dos patrocínios e dos repasses realizados pela maior
empresa de telecomunicações do país, as Escolas contam ainda com
contribuições dos governos estadual e municipal. A renda das agremiações
é complementada também, em menor escala, por shows, ensaios, bailes e
eventos, ao longo do ano.
A falta de autonomia e de liberdade criativa das
Escolas de Samba na escolha dos sambas-enredo é apenas a ponta do
iceberg do processo de mercantilização e profissionalização da festa,
que ganhou novos contornos a partir da década de 1980 e que, mais
recentemente, atinge também os blocos de rua da cidade. Em 2009, a
Prefeitura do Rio de Janeiro lançou um edital para firmar uma parceria
público-privada para atuar na organização do carnaval de rua da cidade.
Desde 2010, a Ambev assumiu a concessão, investindo em infraestrutura e
ganhando direitos de propaganda e de comercialização da cerveja
Antártica.
Carnaval monocromático, patrocinado pela Ambev.
A parceria ganhou o apoio da Sebastiana, liga formada
pelos maiores blocos da Zona Sul, de Santa Teresa e do Centro e que
atualmente é a principal afilhada do poder municipal.
Outros blocos estão surgindo e novos grupos já estão sendo formados para representá-los,
como é o caso da Liga Carnavalesca Amigos do Zé Pereira, que defende a
profissionalização como um caminho sem volta. Grande parte dos novos
foliões que despontam no cenário acena para pegar carona no percurso que
já vinha sendo percorrido por alguns blocos tradicionais da cidade nos
últimos anos. Captar recursos públicos e privados e garantir a
apresentação em casas de shows da cidade e do país passou a ser a
primeira meta na pauta desses foliões.
Os desdobramentos do gigantismo e da rentabilidade do
carnaval carioca estão diretamente ligados às demandas da sociedade
capitalista, que procura mercantilizar a vida em todas as esferas das
relações sociais. A folia, portanto, se insere na lógica da indústria
cultural, que transforma as formas de expressão e de representação da
realidade em um produto a ser comercializado.
Vale lembrar que o Rio de Janeiro não está isolado e
que essa apropriação da cultura pelo capital poder ser também percebida
em outros carnavais pelo país, com as particularidades históricas e os
elementos artísticos específicos de cada evento. As cordas e os abadás
presentes de forma ostensiva no carnaval de Salvador, por exemplo,
demonstram a dimensão desse processo de mercantilização e servem
inclusive como alerta para os riscos cada vez maiores de expansão da
privatização da folia.
Esse cenário desolador pode levar a sedimentação de
generalizações equivocadas sobre o carnaval, relacionadas principalmente
à romantização das origens ou à idealização dos significados políticos
da festa. Não são raros os argumentos daqueles que defendem um retorno
ao passado distante da folia, como se o carnaval tivesse sido
constituído por uma essência de harmonia, liberdade e igualdade plena.
Também é recorrente o entendimento do carnaval como uma mera válvula de
escape das tensões sociais, destinada somente à manutenção da ordem.
Essa tese conservadora parte do pressuposto que a folia teria apenas o
papel político de controle social, o que de certa forma acaba por
desconsiderar as contradições e as formas de resistências construídas ao
longo do tempo.
Experiências concretas de resistência: Cordão do Boi Tolo e Desliga dos Blocos
No Rio de Janeiro, há um fenômeno que podemos
considerar a faísca e uma das saídas para os impasses impostos pelo
capital ao carnaval. Em 2006, vários foliões comparecerem à Praça XV
para o desfile do Cordão do Boitatá. Ao não encontrarem o bloco, que
havia mudado a data de seu desfile para evitar multidões, surgiu de
forma espontânea um dos grupos que levanta de maneira mais forte a
bandeira contra a mercantilização do carnaval e da defesa da liberdade
criativa das manifestações culturais populares, o Cordão do Boi Tolo.
Desde seu surgimento, o Boi Tolo se notabilizou por fazer uma folia que
percorre a cidade, sem trajetos definidos, sem cordas e sem limites para
a expressão libertária da festa.
Já em 2009,
o governo de Eduardo Paes lança os primeiros decretos para regulamentar o carnaval.
O poder municipal passa a exigir que os blocos peçam autorização para
desfilar, preenchendo um requerimento que deve incluir dados do desfile
como o público estimado, o local de início e término, se há
patrocinador, carro de som, etc. A falta de diálogo tem sido a marca
dessa normatização, pois os canais de comunicação ficam restritos ao
cumprimento das regras burocráticas, cabendo à Prefeitura a tutela para
definir quais blocos desfilarão. A falta de debate e de critérios claros
representa o cerceamento da liberdade de organização dos blocos,
através da imposição de medidas arbitrárias que têm por objetivo de
favorecer os interesses privados dos patrocinadores e das empresas
vencedoras das licitações.
O potencial transformador do carnaval
A recente experiência histórica do Cordão do Boi
Tolo e da Desliga dos Blocos demonstra a existência de reais
possibilidades de resistência e de construção de uma autonomia popular
frente à mercantilização e à domesticação da folia pela indústria
cultural. Se é inegável a instrumentalização do carnaval como meio para o
exercício do controle social, é também fundamental o reconhecimento do
potencial transformador dessa festa popular. Longe de ser um espaço
homogêneo, harmônico e distante das disputas políticas, ele é terreno da
luta de classes e de conflitos sociais, sendo marcado, portanto, pela
dialética relação entre dominação e resistência.
“Vai ter Carnaval, mas não vai ter Copa”.
O carnaval não é somente uma inversão dualista e
temporária do social, representada pelo caráter simbólico das máscaras e
das fantasias que, por fim, estariam fadadas a justificar de maneira
conservadora o mundo. Ele é um instrumento de ação que pode fazer uso da
quebra das hierarquias e da crítica irreverente e satírica da realidade
para a transformação social. É por isso que deve ser ampliada a tarefa
de incorporação de pautas políticas e sociais nos dias de folia.
Os desafios são gigantescos e os meios de
resistências certamente não estão restritos à atuação do Boi Tolo e da
Desliga. Novos canais de atuação devem ser criados, sem perder de vista a
formação da necessária unidade. É preciso fazer com que a criatividade
da festa seja também o combustível para a construção de uma sociedade
justa e igualitária para além da quarta-feira e do Rio de Janeiro.