Manifesto do Carnaval Nômade

A retomada do carnaval de rua do rio de janeiro é um processo histórico e singular. Alguns se lembram das pequenas aglomerações que começaram a ressurgir no final do século passado, em diversos lugares da cidade, relembrando marchinhas, apresentando a própria noção de carnaval para uma nova geração. Esse momento foi mais que a retomada do carnaval, ele foi o momento da retomada da rua, de uma rua que andava a muito esquecida. Sem nenhum esforço do poder público, sem o patrocínio de uma marca de cerveja, sem qualquer cobertura do rj tv, espontânea e coletivamente a multidão tomou à força o que já lhe pertencia: nosso espaço comum.

Nos últimos anos, o crescimento exponencial do número de blocos e de foliões traz uma série de dúvidas em relação ao nosso carnaval. Primeiro porque certos blocos começaram a ficar superlotados, impedindo algumas pessoas de se divertirem, já que ficou impossível ouvir o som dos instrumentos, cantar e dançar. Segundo, porque o Estado e o mercado perceberam o que lhes era óbvio: um precisa controlar a multidão que toma a rua e o outro precisa usá-la para ganhar dinheiro. 2010 trouxe ao auge esse processo de ordenamento e controle: o choque de ordem e uma publicidade abusiva que invade nossas ruas.

Essa tentativa nunca será totalmente efetiva. Porque nós, que não somos nem o Estado nem o mercado, temos a eterna capacidade de nos reinventar. Porém, temos pela frente um desafio histórico de lidar com esse dilema entre o crescimento e a espontaneidade sem qualquer tipo nostalgia ou elitismo. Criar nossas táticas de fuga é manter a verve viva. E isso não significa recusar as massas, mas transformar a massa em multidão que toma a rua de maneira ingovernável, múltipla e criativa.

Não foi preciso escrever esse manifesto para que isso já aconteça. Ao contrário são os próprios sinais da resistência que influem nessa escrita a milhares de mãos. A multiplicação dos blocos em número, ritmo, trajeto e formato, já nos mostra essa criatividade infinita que se esparrama pelas esquinas da cidade e que a prefeitura agora teima em querer controlar. Algumas experiências podem iluminar nosso caminho.

Entre tantas, cito uma que nasce do próprio dilema. Um grupo de foliões que acordou cedo para pular o carnaval se viu enganado: o bloco em que iam tinha mudado de horário propositadamente para que menos pessoas o acompanhassem. Em vez de voltar pra casa eles criaram outro bloco, ali , na mesma hora. Chegou um bumbo, chegou um trompete. A festa começou e dura até hoje. Nos anos seguintes, saindo do mesmo lugar, os foliões inventaram a ocupação de novos espaços, novas acústicas e experiências que vem se tornando memoráveis nos últimos carnavais. A cidade estava aberta, e foi ocupada. Essa experiência lisérgica é a faísca.

Devemos ser nômades. Ocupar a rua desgovernadamente, criar novos caminhos que se bifurcam, inventar o que não foi inventado, criar novas identidades, mudar de endereço. O nomadismo é a redenção da alegria. É a garantia de não ser enquadrado. Devemos ficar na rua o tempo todo, sem rumo, cantando e dançando, sem parar.

Para isso esse manifesto sugere algumas táticas:

  • Ocupar áreas esvaziadas e subutilizadas durante o carnaval, como grande parte do centro, gamboa e diversos bairros do subúrbio.
  • Sair sem rumo do mesmo local e horário dos grandes blocos, se transformando em sub-blocos. Sub não de menor, mas de abaixo da superfície, que se infiltra nas profundezas da cidade.
  • Saber a hora de mudar de horário, mudar de nome, mudar de trajeto. É se desapegar da tradição e reinventar-se constantemente
  • Recusar o cadastramento da Prefeitura. Somos apenas um grupo de pessoas cantando e dançando na rua. Quem pode nos proibir?
  • Zombar do cerco dos grandes meios de comunicação. Recusar o esteriótipo e o esvaziamento de sentido constante dos jornalistas.
  • Intercâmbio de blocos. Que tal a Orquestra Voadora em Bangu e o Virilha de Minhoca no Aterro? (é só um exemplo, mas quem não conhece o virilha de minhoca deveria conhecer)

Conversando com um bêbado na rua ele nos sugeriu um nome: A Desliga dos Blocos do Rio de Janeiro. Foi fundada na mesma hora. Sem Presidente ou Tesoureiro. Filiação voluntária e automática. A Desliga não é contra o carnaval certinho. Até porque nele ainda há espaço pra muita diversão, alegria e catarse coletiva. Sem ele as ruas não estariam tão cheias de pessoas fantasiadas. A Desliga é a válvula de escape para aqueles que querem mais. E todos estão convidados.

A Desliga também não é contra o poder público, mas acha que poder público deve fazer o que lhe convém. Em vez de cadastrar blocos, deve criar áreas livres de folia em diferentes bairros, em diferentes dias do carnaval para que os nômades possam passar. E vez de aumentar a passagem, deve oferecer transporte gratuito e ininterrupto para todos, facilitando a circulação e a integração da cidade. (Vale dar uma olhada: http://tarifazero.net)

O carnaval é e sempre será um ato politico. (Como demonstrou bem nesse ano de 2010 o bloco “Vergonha da Zona Sul” que levou a banda de catadores e mendigos para a praia de Ipanema). É a incorporação da arte no cotidiano. Lutar para preservar sua potência é lutar por uma rua que nos é sempre tirada. Avancemos foliões nômades !! Viva o carnaval, viva o Zé pereira e o Saci pererê, Viva o sorriso doce dos que desobedecem.... Em tempos de tanques nas ruas, não retrocedamos, com a certeza de que um dia, o exército de palhaços vencerá!!

Ass: foliões nômades, palhaços anônimos, Comitê Ambulante da Desliga dos Blocos do Rio de Janeiro

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